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sábado, 2 de abril de 2011

O poder esmiuçado em gestos



Por Leandro Santolli
Foto : Alex Hermes

Ato - Grupo Magiluth / Recife -PE

O chão é quente, mas quem tem poder tem bons sapatos. Desde esse início já está dito claramente à platéia, por meio dos sapatos e suas solas, que há ali uma hierarquia naturalmente respeitada, naturalmente mantida. Desde esse início já não se usam palavras para dizer esse tipo de coisa.

Outros signos óbvios aparecem: a coleira, o plano mais alto que obriga o subordinado a olhar para cima e, conseqüentemente, a sentir-se menor, os chiliques de quem tem o poder, o distanciamento forçado, a possibilidade de sentar-se, o tamanho das malas.

É a partir deste panorama inicial, construído por quatro personagens clownescos, que o grupo nos convida a ir mais longe nesta experiência bem humorada, que tem uma forma de expressão leve, mas é crítica e profunda nas contradições que releva.

Quando os 4 personagens começam a se relacionar entre si, desenham-se, a meu ver, três sutilezas da construção e manutenção do autoritarismo e da exploração. A primeira é a característica do poder autoritário de se transferir de “escalão” para “escalão”, aproveitando-se da mágoa misturada ao orgulho e à ambição. Assim, se alguém grita comigo de cima, grito eu com quem por azar esteja logo abaixo e desse modo me sinto aliviado transferindo a humilhação. E, claro, me sinto poderoso, mesmo que as ordens professadas não tenham partido de uma demanda ou de um desejo meu. O prazer ou obrigação do cumprimento de ordens superiores traduzido na sensação de eficiência ou de “dever cumprido” aliado ao deleite ou status de dar ordens, ainda que não me tragam qualquer benefício, fazem a roda do poder girar sem que os oprimidos se sintam verdadeiramente incomodados, uma vez que é possível descontar a opressão oprimindo.

O segundo e ainda mais cruel pormenor de um sistema que se sustenta na exploração está no fato de que o oprimido é quem cria/ produz os bens que dão ao opressor seu bem-estar, seu destaque social e suas vantagens diante dos demais. Ao que cria/ produz resta a função de continuar atribuindo valor ao que foi produzido, à medida em que deseja aquilo para si. Já dizia aquele barbudo que não é nem Deus, nem Papai Noel, nem o mago Merlin nem Paulo Freire… alienação do trabalho e da produção.

Finalmente, outra tática discreta e eficaz de manutenção das posições no tabuleiro é a desmobilização: quem está no poder se entende e se articula muito bem, pois tem objetivos claros e simples em comum (não está dito na peça mas eu me arrisco a dizer que no caso da nossa sociedade esse objetivo comum simples e claro é o lucro), enquanto quem é explorado não se entende, caminha para sentidos opostos e muitas vezes reproduz a estrutura de poder com seu colega de exploração. E, quando, por milagre divino (ou do outro barbudo mexendo seus pauzinhos lá do outro plano), os explorados se aproximam e esboçam uma união, os poderosos logo conseguem reestabelecer a competição entre eles, arma infalível para colocar um contra o outro e afastar qualquer perigo de mudança.

Tudo isso o grupo coloca em cena, sem precisar – como eu precisei – desse monte de palavras. As metáforas que levam a essas conclusões são jogos simples entre os quatro personagens, sempre em torno de bens que representam qualquer tipo de propriedade que tenhamos e de interações que representam nossas tentativas de união ou mesmo de proximidade carinhosa. Alguns ruídos, alguns objetos muito bobos, algumas malas, garrafas de água (cachaça?), sapatos e um jornal. E, pronto, a estrutura se revela. E, ainda que contraditoriamente a tese do grupo seja extremamente pessimista com relação à manutenção da estrutura de poder, ao revelar seu funcionamento, os artistas começam a botar lenha na fogueira em que ela poderá – quem sabe um dia – queimar e, enfim, transformar-se.

4 solas de sapato diferentes

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