Por Leandro Santolli
Foto : Alessandra Nohvais
Há pelo menos um século o estatuto da obra de arte vem sendo vertiginosamente modificado e, ao que parece, se alargado ao encontro dos territórios mais banais, diversos e controvertidos (alguns, inclusive, nada estéticos) da vida cotidiana. Tudo indica que a arte, como nenhum outro campo da cultura, constitui uma espécie de buraco negro em incessante expansão, sendo capaz de se alimentar de tudo aquilo que, ao longo de sua labiríntica trajetória, tenta negá-la ou destruí-la. Basta recorrer a exemplos implacáveis como os de Antonin Artaud, John Cage, Alan Kaprow, Andy Warhol (todos hoje, venerados) e, claro, o bom e velho Marcel Duchamp, cujo gesto meramente chistoso de inscrever um simples urinol de porcelana na exposição da Society of Independent Artists, de Nova Iorque, em 1917, o rende até hoje o título de gênio.
Um dos maiores legados deixados pelas vanguardas artísticas e, especialmente, pelas experiências performativas que começam a se proliferar por todo o mundo a partir dos anos 60, foi a dessacralização do objeto de arte. Esse movimento, mais ou menos organizado, no Brasil, contou com o reforço do neoconcretismo e os seus não-objetos, bem como de diversos artistas performáticos e de um certo teatro disposto a quebrar a distância entre os corpos e o fio racionalista. Desde então, o degelo desta aura protetora da obra de arte, lentamente, vem deixando o público cada vez mais à vontade para tocar, trocar, experimentar, inter-agir. O artista, com isso, passa a habitar um outro lugar, acessível em pleno voo, deixando de ser aquele gênio da razão transcendental, ao qual só devemos aplausos, no final, para não atrapalhar.
Entretanto, nesse contexto de densa ressignificação da obra de arte e, especificamente, do teatro (já apelidado de “pós-dramático”), ainda se espera, em geral, de um ator em cima do palco, que nos conte uma história inteligível em sua totalidade, previamente escrita, de preferência tendo um final memorável; e que faça isso interpretando um ou mais personagens que, claro, defiram visivelmente de si, e cujas indagações não devem ser respondidas (ao menos não em voz alta!) por nós, espectadores. Véu , uma poética do só , com texto e direção de Luiz Antônio Junior , é a materialização de uma verdadeira obra de arte com todos os ingredientes fundamentais expostos. O espetáculo nos remete a uma reflexão do universo feminino, partindo da violência contra a mulher , seja sexual, física, moral, psicológica, como uma colcha de retalhos, onde o ator-criador vai costurando personagens, situações fictícias ou não , musica e informações, e o faz de maneira singular. A narrativa que traz a tona uma realidade velada nos direciona a uma reflexão profunda sobre a mulher ‘vítima e culpada’, mulheres outrora escondidas pelo medo, pela vergonha, pelo desamor, e como o próprio diz ‘ escondidas no véu da vergonha’.
Olhar um ator em cena é ver suas máscaras e também o homem ocultado pela personagem. E Luiz Antonio com seu coração e suas máscaras se impõe em cena, mostrando que para estar na vida é preciso viver. Véu não é uma criação genesíaca. Trata-se de um espetáculo que faz parte de uma tradição de arte contemporânea que põe os explicadores (exegetas, como gostam de dizer na academia) em desordem e expulsa sumariamente os juízes de carteirinha. Luiz sente esse trabalho em diversos níveis de composição de atuação, as linhas entre verdade/mentira e ator/personagem são mínimas. Nesse campo, dialoga inclusive com o cinema de Eduardo Coutinho, onde a realidade e a ficção se misturam e se confundem, é notório e intensifica um suposto desejo em 'experimentar no teatro'. Véu parece ainda mixar gêneros diferentes, aproximando a estrutura de um monólogo a um reality show interativo, em que o público participa, e é estimulado, desde o início. Não se trata de uma exortação agressiva, e CHATA, como muitos dos espetáculos da década de 1960 e de 1970 que ainda fazem eco em algumas produções artísticas contemporâneas. O público não se sente constrangido pelo, performer/ator que se encontra em cena. Aliás, essa experiência direta com o público é um dos pontos altos do espetáculo, o qual foge a rótulos classificatórios (“gênero nenhum me pega mais”, já dizia Clarice).
É um trabalho que baseia experiência teatral numa ambiência particular. E Luiz em meio a este turbilhão de pensamentos, possibilidades, reflexões, continua lá organicamente na cena, faz de si mesmo uma obra de arte; mostra-se humanamente falho e por isso encantadoramente uma obra prima.
O espetáculo foi assistido no dia 26 de março em Alagoinhas-BA , no Centro de Cultura e Arte | Fez parte da programação do Festival Arte para todos , do qual a Blog Síncope participou como convidado
O espetáculo foi assistido no dia 26 de março em Alagoinhas-BA , no Centro de Cultura e Arte | Fez parte da programação do Festival Arte para todos , do qual a Blog Síncope participou como convidado
3 comentários:
PARTICURLAMENTE LINDO.
TUDO.
MERECEDOR DE MUITAS PALAVRAS;
AO COMEÇAR PELO CRITICO A TODOS OS QUE FAZEM PARTE DESSE UNIVERSO CHEIO DE CORES E MAGIA. DE ILUSOES E REALIDADES. TOCANDO NO MAIS SIMPLES FILAMENTO SENTIMENTAL QUE É A MULHER COMO A ATUAÇÃO ESCRITA EM PEQUENAS PALAVRAS POR UM ALGUEM QUE AMPLIA O SEU OLHAR PARA UM UNIVERSO RICO EM DETALHES E SENTIMENTOS.
O VÉU RASGUE, A VIDA CONTRACENE, AS HISTORIAS REESCREVAM.
UM SIMPLES OLHAR DE QUEM VIU ALGUEM AMAR.
VALEU AMIGO VC É LÉO.
PS: LINS.
opa sincope de volta! já nao era sem tempo!
Véu é um dos trabalhos solo mais completos e bem estruturados dos ultimos anos . Belo na afirmação , belo na poesia e belo na vontade de mudar o rumo de tantas mulheres outrora coargidas.
Postar um comentário